Duas escolas. Dois mundos

[texto publicado em julho de 2009, em um blogue que deixou de existir]

As duas escolas em que trabalho, apesar de ficarem a menos de dois quilômetros uma da outra, parecem estar em dois mundos diferentes – e são a prova de que a educação só é possível com organização e disciplina da parte de todos os atores envolvidos no processo.

O ambiente: Vilas Esmeralda e São Jorge, em Viamão, cidade-dormitório da periferia de Porto Alegre. Um lugar mais ou menos assim:

São comunidades parecidas, formadas por pessoas de baixo poder aquisitivo, com elevados índices de violência e criminalidade, forte e notável presença do tráfico de drogas etc, como acontece em tantas outras periferias brasileiras.

Num lugar desses, este é o aspecto normal de um posto de saúde, por exemplo:

Pois bem. Em uma das referidas escolas, essa realidade de violência, permissividade e desorganização é reproduzida e até aprimorada. Na outra, a maioria desses problemas é barrada no portão de entrada.

EMEF Território do Caos

O nome é fictício, mas tem excepcional valor descritivo. Observe, por exemplo, o cemitério de carteiras e cadeiras quebradas que fica nos fundos da escola:

Você já tentou quebrar uma cadeira ou uma carteira, leitor? Eu nunca tentei, mas imagino que a tarefa não seja das mais fáceis.

Tantos móveis inutilizados só podem significar duas coisas: ou a escola recebeu a visita de uma manada de búfalos, ou os alunos que a frequentam não têm muita intimidade com normas de conduta.

O mobiliário não é a única vítima da violência nesse educandário. Os alunos também quebram portas, vidros, divisórias de banheiro, canos; picham paredes e carteiras.

À noite, um dos passatempos dos moradores da vila parece ser apedrejar a escola, quebrando telhas e vidraças:

Pelo vidro quebrado, podemos ver o rosto de Paulo Freire, num banner em que está escrito:

“…Escola é, sobretudo, gente,
gente que trabalha, que estuda,
que se alegra, se conhece, se estima…”

Meu amigo Paulo Feire, você já visitou esta escola? Se visitasse, veria coisas como essas:

– Uma das salas de aula passou quase todo o ano de 2008 sem porta. As dobradiças foram simplesmente arrebentadas por impacto (s) de natureza ignorada. Quem quebrou a porta? Não se sabe. Que medida socioeducativa foi tomada? Nenhuma.

– Numa tarde deste ano, estávamos na sala dos professores no fim do recreio, quando uma aluna bateu na porta. Ao ser atendida pela vice-diretora, a menina foi logo gritando: “Sôra, tão batendo no Fulano!” Que atitude tomou a educadora? Apenas disse: “Tá, já vou dar o sinal, pra vocês irem pra sala”. E simplesmente encerrou o recreio, como se o espancamento não tivesse ocorrido, como se não fosse necessário identificar e punir os culpados.

– Num sábado letivo (desses em que nada se faz, apenas para o presidente poder se gabar de ter 200 dias no calendário escolar), alunos vieram correndo informar que um colega tinha dado um pontapé em uma porta e arrebentado o marco, tornando inútil a fechadura. Adivinhe o que foi feito… Nada. A porta continua inutilizada e o infrator, que sequer foi identificado (ou, se identificado foi, não sofreu punição), aprendeu as maravilhas da impunidade.

Como uma escola chega a tal nível de degradação?

Quando cheguei lá, no início de 2008, percebi que a direção e o grupo de professores estavam em guerra. Intrigas e ranços pessoais geram um clima de má vontade de ambos os lados, o que impossibilita qualquer pacto, qualquer trabalho integrado.

Não há referencial, não há regras claras e unívocas, não há diálogo entre os segmentos da comunidade escolar. Em caso de problemas, não há a quem recorrer e, quando se recorre à equipe diretiva, ouve-se respostas desse tipo:

“Eduardo, os nossos alunos são filhos de traficantes, são irmãos de presidiários. Nós não podemos bater de frente com essa gente.” (dito pela diretora, que, aliás, entrou em licença-saúde e provavelmente não voltará ao cargo)

“Eu não vou fazer mais nada em relação ao Fulano (aluno com graves problemas de conduta)”. (dito pela orientadora, em reunião pedagógica).

O leitor corajoso que chegou até aqui pode estar se perguntando: “Por que raios esse cara não sai dessa escola?”

Ora, pergunte ao secretário de Educação.

Pedi transferência no final do ano passado. A Secretaria não me deixou sair totalmente; apenas reduziu a minha carga horária lá em 10 horas, mandando-me cumprir esses períodos em outra escola, tão perto e tão distante da EMEF Território do Caos.

EMEF São Jorge

É comum que as pessoas que visitam a escola São Jorge exclamem coisas como “Nem parece escola pública!” ou “Parece escola particular!”

A vila São Jorge também é pobre e problemática, mas as paredes e móveis da sua escola não estão pichados, os banheiros estão bem conservados, têm espelhos intactos, azulejos brilhando nas paredes e, pasmem, sabonetes nas pias!

As portas e janelas estão intactas e não há uma montanha de carteiras e cadeiras quebradas nos fundos. Não há espancamentos no recreio.

Será a escola freqüentada por anjos? Não. Lá também há alunos agitados e mal-educados, também há problemas, mas a diferença é que esses problemas são imediatamente identificados e tratados.

A equipe diretiva, professores, funcionários, pais e alunos trabalham juntos em prol do bem comum. Não por boa vontade e abnegação, mas porque as normas de conduta foram definidas em conjunto e são constantemente lembradas. Todos os segmentos da comunidade escolar são orientados a seguir as regras.

Na EMEF São Jorge, diferente de outras escolas, foi estabelecido o seguinte pacto: o normal é que as coisas funcionem bem. Os problemas são exceção. Por exemplo, todos os alunos sabem que as carteiras têm de estar limpas. Quando uma é pichada, todos sabem que isso foge à normalidade – e o pichador é localizado e sofre a medida socioeducativa prevista nas normas de conduta.

Quando um professor, aluno ou funcionário é agredido verbalmente, todos sabem que isso é um desrespeito às normas de conduta – e o infrator já sabe que o deslize não vai passar em branco. Lá não existe a cultura do “Não dá nada.”

Os alunos da São Jorge também têm parentes e/ou amigos traficantes e presidiários, mas lá ninguém da equipe diretiva diz “Não podemos bater de frente”, pois a lógica é outra: o infrator é que está batendo de frente com a instituição chamada escola. Assim, a agressão a um colega é tratada como uma agressão à escola. A pichação é tratada como uma agressão à escola. Matar aulas é tratado como uma agressão à escola. Portar celular na sala de aula é tratado como uma agressão à escola.

Os professores da São Jorge também têm regras rígidas de conduta. Por exemplo, todos os dias dois mestres passam o recreio no pátio, fiscalizando o comportamento dos alunos. Em outras escolas, tal medida geraria um motim. “O meu intervalo é sagrado!”, já ouvi uma professora bradar, alhures. Pois bem, na São Jorge a norma foi sacramentada no Projeto Político Pedagógico e, graças a ela, os alunos sabem que estão sendo observados e não se comportam como uma manada de búfalos.

Infelizmente, uma escola assim é exceção na rede pública. Mas o seu exemplo mostra que ainda há esperança para a educação no Brasil.

[Para ver um slideshow com fotos das duas escolas, clique aqui]

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